O artigo 2º da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) aponta que empregador é a empresa que assume o risco da atividade econômica. Ao terceirizar a atividade-fim, a principal da companhia, o empresário promove uma atuação sem risco da pessoa jurídica e passa a comandar um negócio que frauda a lei.
A conclusão não é de nenhum dirigente sindical ou liderança trabalhista, mas do professor de Direito Empresarial da Universidade de São Paulo (USP), Calixto Salomão Filho.
Em seminário sobre direito do trabalho e sindicalismo na última sexta (7), em São Paulo, ele e outros juristas demonstraram preocupação com os rumos que a discussão sobre o tema tomou no país.
Além do julgamento no Supremo Tribunal Federal da Ação de Repercussão Geral sobre a terceirização na atividade-fim, há o risco de o Congresso Nacional retomar o Projeto de Lei 4.330/2004 que trata do mesmo tema e foi engavetado em 2013 por conta da mobilização comandada pela CUT.
A avaliação é que avançar na terceirização dessa maneira representa um desastre jurídico, social e econômico.
Presente de grego
Calixto Filho explica que ao transferir as funções para uma terceira, a empresa prejudica a sociedade e a si mesma. Ao admitir que o risco do trabalho saia de dentro da companhia, admite que a empresa não terá controle sobre o produto final.
Por um lado, destaca, isso causa insegurança para definir quem será responsável por responder junto ao consumidor pelos problemas que virão. Por outro, como as terceirizadoras apresentam piores condições de trabalho, não atrairão mais trabalhadores qualificados.
“As terceirizadoras se tornam gestoras de risco alheio, quase uma casca sem realidade empresarial que assume riscos que a outra não quer assumir. A realidade dessas empresas é de contratar, recontratar, demitir, não pagar hora extra. E como não tem realidade própria, não tem organização real, faz crescer o risco de inadimplência trabalhista”, explica.
O professor lembra ainda que uma empresa se define pela coexistência de vários interesses, entre eles, o dos trabalhadores, diretamente envolvidos na produção e que acabam negligenciados na terceirização total.
Ele citou como exemplo a relação diária com as pessoas responsáveis pela limpeza na Faculdade de Direito da USP. “Ali se sente na pele o que é a degradação do trabalho. Vejo todo dia faces cansadas, que parecem do século 19. Porque convivem com contratantes que assumem o risco, demitem logo e contratam outro”, afirma.
Empresários terão prejuízo
Um dos resultados desse processo, destaca, é a fragmentação sindical e a perda da capacidade de pressão dos sindicatos, algo que classifica como parte da marcha do sindicalismo. “Isso resulta em desbalanceamento das forças na relação capital e trabalho”.
Para o professor, a defesa desse modelo pelos empresários representa enorme desconhecimento sobre os resultados que trará.
“Os empresários não sabem o que defender e o problema dessa realidade é que, às vezes, vão por um raciocínio ideológico da liberdade de contratação e não sabem o efeito que terá sobre a atividade deles. Para a moderna concepção de empresa é extramente deletéria a terceirização. Talvez para uma empresa individualista do século 19 fosse normal, mas para a empresa moderna não pode ser”, critica.
Prejuízo na pele
Também para o juiz e ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Luiz Phillipe de Mello Filho a terceirização é sinônimo de desigualdade pelos prejuízos que traz ao mundo do trabalho.
“Dizem que a terceirização não reduz direitos dos trabalhadores, mas o que vemos é o aumento do trabalho informal, perdas de conquistas históricas das categorias, substituição da mão de obra permanente, perda de responsabilidade da empresa e o fim da identidade profissional do trabalhador. Passamos a ter a categoria dos terceirizados”, ressalta.
Ele lembra que o modelo de contratação está ligado a diferenças nas condições de trabalho e acidentes. “Em 2013, 100% dos trabalhadores forçados registrados em fiscalização se deram em empresas terceirizadas. Na classe dos bancários, os trabalhadores de call center recebiam R$ 550 para jornada de 36 horas e adicional noturno de 20% , enquanto os bancários recebiam R$ 1.250 para jornada de 30 horas e adicional noturno de 35% para a mesma atividade. Entre 1995 e 2008 morreram 257 trabalhadores na Petrobras, 81% terceirizados”, enumera.
O ministro também conta o sentimento de conviver diariamente com as dificuldades de quem enfrenta essa realidade. “No meu tribunal há uma série de terceirizados e não há sentimento de pertinência, de identificação, de unidade de produção. A rotatividade é absoluta e a licitação para um serviço de vigilância para o tribunal é diferente do que é para o STJ (Superior Tribunal de Justiça), para o STF. Qual a diferença? Seriam as contribuições previdenciárias, o FGTS ou as horas extras que não recebem?”, questiona.
Direito social discriminado – Para ele, o direito social é discriminado de tal forma no país que faz a CLT carregar um carimbo de diploma excessivamente progressista e isso reflete na visão sobre a Justiça trabalhista.
“A CLT reconheceu a necessidade da regulação dos direitos sociais no Brasil e, de 1943 até hoje, o estigma de ser um diploma anarquista incorporou-se, propagou-se e gerou uma marca contra a própria Justiça do Trabalho. O Direito do Trabalho é colocado num compartimento estanque da Ciência Jurídica. É difícil convencer que existe o Direito do Trabalho para quem não milita no Direito do Trabalho”, lamenta.
Segundo ele, isso resulta em ausência de ações fundamentais como a ausência da ratificação no Brasil da convenção 181 e da recomendação 188 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que tratam da flexibilização e terceirização.
Intimidade com a corrupção
Também no setor público, destaca o magistrado, a terceirização é o maior foco de corrupção. “O rombo no Distrito Federal passou de R$ 8 milhões em desvios através de contratos desse modelo de contratação. Não se cumpre mais a Constituição, não se faz mais concurso público, estão terceirizando todas as atividades de administração direta e indireta”, aponta.
O ministro ironiza ao afirmar que, caso seja conferida liminar para a ação no Supremo sobre a possibilidade terceirizar também a atividade-fim, a Justiça do Trabalho poderá entrar em férias coletivas, já que 90% das demandas tratam do tema.
O caminho, defende, é que a discussão recomece a partir de outra premissa que não o Projeto de Lei do Senado 87/2010 e o PL 4330, por classificá-los como propostas muito ruins. A alternativa mais eficiente para os movimentos sociais neste momento, alerta, é elevar o tom da pressão sobre o STF.
“Ouvi do Supremo que a discussão sobre terceirização é questão corporativa porque foram procurados por juízes, procuradores e advogados trabalhistas, mas não pelo movimento sindical. Se quiserem ser ouvidos, tem de ir lá, porque outros irão.”
Gilmar Mendes incomodado – Questionado sobre a recente declaração do ministro do Supremo Gilmar Mendes sobre o STF se transformar em uma corte bolivariana por conta de novos ministros indicados pelo atual governo, Mello Filho lembrou que Carlos Ayres e Joaquim Barbosa foram designados pelo ex-presidente Lula e atuaram como peças importantes no julgamento do chamado mensalão.
Ele acredita que Mendes expõe uma retórica de quem está incomodado politicamente e não aceita o resultado das urnas.
“A democracia é festa, não é ressaca, demoramos muito tempo para conquistar o voto e o meu é tão bom quanto qualquer outro”, conclui.